A National Football League é famosa por colecionar esqueletos em seus armários e guardá-los com cadeados bem resistentes. Todos esses esqueletos ficam lá, mas voltam a incomodar a liga de tempos em tempos. Anteriormente, as concussões representavam o mais chamativo deles e a liga fez questão de negar por anos e anos que elas fizessem parte do esporte mais popular dos Estados Unidos. Contudo, agora o cadáver que assombra a NFL é ainda maior: Colin Kaepernick.
E o motivo de estarmos falando novamente de Kaepernick no meio de 2020 é evidente: o assassinato recente de George Floyd e outros negros devido à brutalidade policial nos Estados Unidos.
É bem possível que, se não tivesse acontecido nenhum dos eventos mais recentes da opressão aos negros nos EUA, Kaepernick seguiria esquecido por mais um tempo. O Black Lives Matter idem.
Na última sexta (5), o comissário Roger Goodell, o chefão da NFL, veio a público dizer que a liga “condena o racismo e a opressão sistemática dos negros”. Goodell ainda admitiu que a liga estava “errada por não ouvir os jogadores da NFL anteriormente e incentivar todos os jogadores a falarem e protestarem pacificamente. Nós, a National Football League, acreditamos que vidas negras são importantes”.
Nada do nome “Colin Kaepernick” ser mencionado no videozinho com mais cara de trabalho de relações públicas do que qualquer outra coisa. Goodell nunca parece genuíno em suas palavras. A NFL e suas 32 franquias idem.
O vídeo gravado pelo chefão da NFL na verdade foi mais uma resposta para apaziguar os ânimos de alguns, depois do vídeo impactante divulgado por grandes astros da liga como os quarterbacks Patrick Mahomes e Deshaun Watson. Uma mensagem poderosa que clamava que a liga se posicionasse e saísse de uma vez por todas de um silêncio ensurdecedor.
Mas fato é que, enquanto a NFL ignorar a existência de Kaepernick, toda e qualquer coisa que a liga falar oficialmente (seja através de Goodell ou qualquer outro membro do seu departamento de comunicação) será tão vazia quanto as lamentações por redes sociais dos pseudo-apoiadores das igualdades sociais e raciais.
Em um belíssimo texto publicado neste último final de semana no site da ‘ESPN’ dos Estados Unidos, Howard Bryant explica por que é tão significativo o fato de Goodell não ter mencionado o nome de Kaepernick em sua declaração. Vale muito a pena ler.
Fingir que Kap não existe só reforça a ideia do público que a liga está muito mais preocupada em evitar ‘distrações’ e seguir embolsando seus bilhões de dólares todo ano.
Mais do que nunca, precisamos falar de Kaepernick. E é por isso mesmo que resolvi escrever este texto aqui no Quinto Quarto.
Quem é Colin Kaepernick?
Atualmente, podemos facilmente dizer que Colin Kaepernick é um dos ativistas de maior voz na questão dos direitos civis nos Estados Unidos. Mas muitas pessoas, sobretudo as que não acompanham a NFL há mais de três anos, podem não conhecer o jogador Colin Kaepernick.
Então, vamos contextualizar.
Nascido em Milwaukee, em Wisconsin, no dia 3 de novembro de 1987, Kaepernick teve como mãe biológica Heidi Russo, que é branca, e seu pai era um afro-americano (de ascendência ganense, nigeriana e marfinense). Russo se separou dele antes de Kaepernick nascer.
Kaepernick foi então adotado por um casal de brancos, Rick e Teresa Kaepernick, que também teve dois outros filhos: o menino Kyle e a menina Devon. A família Kaepernick decidiu adotar Colin depois de perder outros dois filhos por problemas no coração.
Kaepernick frequentou a Universidade de Nevada, onde teve uma excelente carreira, e entrou na National Football League ao ser selecionado pelo San Francisco 49ers na segunda rodada do Draft NFL 2011 (36ª escolha geral).
Após iniciar a carreira como reserva de Alex Smith, ele se tornou o quarterback titular dos Niners no meio da temporada 2012, depois que Smith sofreu uma concussão. Como principal signal caller do time no restante daquele campeonato, ele levou a equipe ao Super Bowl pela primeira vez desde 1994.
Os 49ers foram derrotados no Super Bowl XLVII pelo Baltimore Ravens.
Kaepernick seguiu como titular absoluto em 2013 e 2014, iniciando todos os 16 jogos dos Niners em cada temporada, e chegou a levar a franquia californiana até a final da Conferência Nacional (NFC) em 2013, seu primeiro ano como QB titular em tempo integral.
Em 2015 e 2016, teve muitos altos e baixos, chegou a perder o posto de titular e voltou a recuperá-lo. E nada de playoffs.
Em seis anos jogando na NFL, ele disputou 69 jogos ao todo, sendo 58 como titular, e obteve 28 vitórias e 30 derrotas em temporadas regulares nas partidas em que começou atrás do center. Ele completou quase 60% de seus passes para 12.271 jardas, 72 touchdowns e 30 interceptações.
Também muito conhecido por sua mobilidade e por correr bem com a bola, Kap (não é Kaep) correu para 2.300 jardas e 13 TDs.
Atualmente, ele é um free agent (ao contrário da ‘gafe’ apagada no site da NFL dizendo que ele estava aposentado). E o motivo de ele ser um agente livre atualmente, vamos dizer de maneira bem clara, foram os protestos que ele iniciou lá em 2016.
Os protestos de Kaepernick
Tudo começou no terceiro jogo da pré-temporada em 2016. Na ocasião, Colin ficou sentado no banco de reservas durante a execução do hino dos Estados Unidos. Foi uma maneira de protestar contra as injustiças raciais e sociais, a brutalidade policial e a opressão sistêmica no país.
Na semana seguinte (e ao longo de toda a temporada regular), Kaepernick se ajoelhou durante o The Star-Spangled Banner. O movimento se espalhou pela liga e foi seguido por jogadores de outras grandes ligas americanas, como a NBA.
Os protestos geraram reações extremamente polarizadas, com o presidente Donald Trump se opondo fortemente, alegando desrespeito à bandeira do país, e chegando a sugerir que a NFL deveria “demitir” jogadores que adotassem tal forma de protesto.
Na ocasião, Kap protestou depois dos assassinatos de Philando Castile e Alton Sterling por policiais em dias consecutivos de julho daquele ano.
Agora, com o estopim causado pela morte de George Floyd, o nome de Kaepernick voltou ao debate mais forte do que nunca (para azar de Goodell e da NFL). Os holofotes voltaram sobre ele.
Após a temporada 2016, os 49ers contrataram Kyle Shanahan como novo técnico e o QB não se encaixava nos planos do novo head coach. Desta forma, a organização disse a Kaepernick que planejava dispensá-lo e, em março de 2017, o próprio atleta optou por sair de seu contrato.
No dia 9 de março, começo do ano novo da liga em 2017, o quarterback se tornou um free agent. Desde então, nada de chances substanciais. Apenas alguns testes em times como o Seattle Seahawks e nada.
No final de 2017, Kaepernick resolveu apresentar uma queixa contra a NFL, alegando conluio dos proprietários das franquias para mantê-lo fora da liga, sem uma chance real de emprego. A NFL tentou pedir rejeição da queixa, mas o caso seguiu adiante.
Então, em fevereiro de 2019, foi anunciado que o QB chegou a um acordo confidencial com a NFL e retirou o processo. Na ocasião, o safety Eric Reid, então companheiro de equipe de Kaepernick e o primeiro a se juntar aos protestos, também chegou a um acordo com a NFL.
Reid ficou igualmente sem emprego por um tempo, mas conseguiu ser contratado pelo Carolina Panthers em 2018.
Durante todo este tempo, Kaepernick tem sido repelido pela liga como se fosse o inseto mais asqueroso do mundo. Em 2017, o site de estatísticas ‘FiveThirtyEight’ chegou a destacar com todas as letras que “é óbvio que Kaepernick está sendo congelado por suas opiniões políticas” e que era “extraordinário (…) que um jogador como ele não encontre um time”.
Enquanto não sabe se um dia voltará à liga em que fez seu nome, Kaepernick segue lutando pelas causas dos negros e dos oprimidos. E o QB espera um dia poder ser recebido de braços abertos à maior liga esportiva dos Estados Unidos para utilizar tal plataforma para um bem maior.
A solução
Primeiro de tudo: precisamos URGENTEMENTE que a NFL se posicione de uma vez por todas (e de maneira cristalina) em relação a Kaepernick. Seu nome não pode mais ser ignorado como alguém que jamais disputou 69 partidas de temporada regular e outras seis de playoffs (incluindo o maior jogo dos esportes americanos).
Feito este primeiro passo, que é o mínimo do mínimo, Kaepernick precisa voltar a ter uma chance na NFL. Ele ainda tem 32 anos e já deixou claro que treina constantemente para voltar a jogar futebol americano profissionalmente.
Malcolm Jenkins, safety do New Orleans Saints e um dos fundadores da Coalizão de Jogadores, falou sobre Kaepernick nesta semana e foi duro nas palavras contra a liga.
“Ainda não acho que (a NFL) tenha acertado. Até que eles peçam desculpas, especificamente, a Colin Kaepernick, ou o designem para uma equipe, não acho que eles vão acabar no lado certo da história”, falou Jenkins, no programa CBS This Morning. “No final das contas, eles ouviram seus jogadores, doaram dinheiro, criaram uma plataforma Inspire Change; eles tentaram fazer as coisas até este ponto. Mas tem sido um jogador em particular que eles ignoraram e não reconheceram, e esse é Colin Kaepernick”, observou.
Carlos Hyde, novo running back do Seattle Seahawks e companheiro de Kaepernick nos 49ers de 2014 a 2016, afirmou também nesta semana que acha que a “NFL pode começar contratando Kap de volta”.
Vamos admitir que ele é um QB de mais qualidade do que, pelo menos, 60% dos reservas atuais da liga e até mesmo alguns titulares (sinta-se à vontade para preencher este trecho com Mitchell Trubisky e Jared Goff se você desejar).
E nada de fazer média e promover treininhos para todos os times mostrando sua ‘boa-fé’ de dar uma chance genuína a Kaepernick, sr. Goodell.
A oportunidade deve ser genuína. E isto não é nada mais do que obrigação para corrigir parte de uma injustiça que já é histórica, independentemente do final que esta história terá…